Seca, fome, fé e resistência


Liliana Peixinho, especial para o Mercado Ético
Rosa Maria consegue até R$ 10 por dia com a venda de umbus / Fotos: Liliana Peixinho

Produtos como umbu, mel, castanha, manga, jaca, aipim, mamão, pinha e coco ajudam famílias a enfrentarem o desafio da falta de renda fixa. As lavouras de feijão, mandioca e milho, agricultura básica dos sertanejos, viraram palhas há tempos. 

As cabras disputam restos de pasto e um ou outro arbusto de jitirana, planta típica e resistente do sertão. Sem emprego e sem comida, alguns se sustentam na política de benefícios do governo, formando um ciclo perverso de conformidade. E quem não tem acesso a eles, vai para as estradas driblar os carros para abordar motoristas, na tentativa de conseguir algum dinheiro.

No caminho para Cansanção, vejo uma menina na beira da estrada, do outro lado da pista. Fiz a manobra em uma faixa estreita do asfalto, parei o carro e fui conversar com ela. Rosa Maria, 14 anos, fica na pista o dia inteiro com um balde de umbu. A garota vende o litro da fruta por R$ 0,60. 

No final do dia, com muita sorte, Rosa diz que pode fazer entre R$ 7 e R$ 10. O dinheiro vai para os pais comprarem comida para seus seis irmãos pequenos.

Via crucis em busca de água

Anísio em busca de água para seu gado

Encontrei seu Anísio Ferreira Costa, 58, na beira da estrada, perto do Povoado de Coité, distrito de Tucano, tocando o gado debaixo de um sol de rachar. Parei o carro no acostamento e dei boa tarde. 

Ele respondeu de pronto: “Boa”. Perguntei se o gado já tinha bebido água. “Estou voltando agora de um pocinho que descobri lá na frente”, explicou. 

Aquele senhor havia saído bem cedo, com o sol nascendo, de um lugar chamado Cajueiro, perto de Coité, tendo andado uma légua (seis quilômetros) procurando por água, assim como faz todos os dias.

Desde o início de 2012, a roça de seu Anísio não tem água. As poucas chuvas que caíram, segundo ele, não foram suficientes para encher os tanques cavados no próprio solo. 

Mesmo assim, homem guerreiro que é, demonstra que não lhe falta coragem. Crê na labuta como forma de enfrentamento aos desafios da seca. Ele aprendeu com a vida que não tem porque desistir. 

E assim, não existe cansaço que o impeça de andar tanto quanto seja necessário para procurar água para as poucas cabeças de gado que restaram de sua pequena criação.

Seu Arnou e a grande família

Seu Arnou é desses velhos bonitos, homem forte, coração gigante, mente criativa e alma nobre. Seus olhos azuis, bem abertos, e pele queimada de sol, demonstram o quanto está ligado na vida e seus desafios. 

Trabalhou sempre na roça e, quando teve a chance, deixou de cuidar das terras dos outros e comprou um pedaço de chão para recomeçar tudo.


Arnou mostra o estrago que a seca fez em suas terras

Ali, plantou feijão, milho e mandioca. Quase tudo ia para o sustento da família. O que sobrava, sua mulher, dona Lídia, vendia na feira de Senhor de Bonfim. O dinheirinho conquistado servia para comprar o que não há na roça: açúcar, arroz, café, margarina, pão. 

Fez uma casinha com fogão a lenha, um galinheiro e um cercado para umas poucas cabeças de cabras e bodes. Quem sabe cuidar e tem família unida e corajosa para trabalhar, observa logo os resultados. E foi cuidando de filhote em filhote, de pé em pé de milho, que um dia ele viu uma dúzia de cabeças de caprinos chegar a quase 100 e uns pezinhos de milho virarem um milharal.

Seu Arnou espera e respeita o tempo em seus ciclos de vida. Nunca comprou uma galinha de granja. De vez em quando mata um franguinho ou um bode para alimentar a família. Tudo na quantidade certa, sem exageros ou desperdícios nos pratos.

Mas nessa seca, ele teve que vender todas as suas cabras e bodes. Não aguentava mais ver os bichos morrerem de sede e fome, sem água e sem comida. Foi uma tristeza ouvir seu relato, mas sem se queixar, acredita que em breve vai recomeçar uma vez mais, como sempre foi sua vida.

A casa de Dudu, Dedé, Van, Braz e Sil


De sorriso largo, no centro da foto, a repórter Liliana peixinho se acolhe no calor da família 
de Dedé (com o menino de camiseta vermelha) e Sil (à direita da foto)


Eles moram no alto do Bebedouro, numa casa de varandas, onde o vento assovia forte e refresca o calor do sol quente do dia pra embalar os sonhos de noites em estrelas de janelas abertas. 

O terreno é fértil, a cultura é farta, a coragem e a fé são de sobra. A harmonia e o amor integram a paisagem, logo na chegada, com os latidos da cadela veludo e a abertura da porteira por uma criança encantadora, que tudo observa e pouco fala. Se na Terra tem um paraíso, esse lugar pode ser a casa dessa família linda.

Todos acordam muito cedo. Quando levantam da cama, a sintonia para o trabalho é imediata, natural e silenciosa. Dedé, o chefe da casa, vai com as cabras para dentro da mata virgem, que graças a essa família ainda se encontra preservada. Lá, entre uma caça de nambú e outra, Dedé se perde no tempo. 

Olha pro céu, vê o sol sob a cabeça e lembra que é hora do almoço. 

Como ele, todas as pessoas da casa tem o mesmo ritmo com os afazeres: a mulher, Silvia, planta, rega, colhe e cozinha; a nora, Vanilda, limpa, lava, arruma e perfuma; o filho, Braz, viaja, compra, vende, conserta e constrói; o netinho, Dudu, faz um pouco de tudo, semeando amor, união e exemplo de coragem, desenhando o futuro em pílulas diárias de ação do bem.

A casa é ampla, bem dividida, arejada e limpa, impecavelmente limpa. As panelas brilham, o banheiro é perfumado e a varanda convida para uma boa conversa. Tudo tem o tempo e sintonia certa na casa de Dudu. 

Até a cadela Veluda é tão educada que, na experiência de ver fazer a buchada de bode, fica ao lado das pessoas que estão tratando as carnes, quietinha, com a cabeça encostada na laje e o corpo espreguiçado. Ela sabe que a espera será longa para ganhar a sua parte das poucas sobras dos pratos.

Mesmo numa seca que dura mais de 14 meses na roça do alto do céu, como chamo esse paraíso, ali tem de tudo plantado. A horta recebe água duas vezes ao dia, com um regador de mão de 3 litros.

Lá em cima, essa água da chuva fica armazenada em cisternas. Eles sabem o valor desse recurso e se preparam para garantir a vida, em todos os seus ciclos. 

Por isso Sil e toda sua família pode garantir um verde quase milagroso numa paisagem árida, ao longe, com pastagens ao fundo, aqui e acolá, ameaçando uma mata rica em ouricuri, juá, arueira, baraúna, umburana, pau derato, umbuzeiro, calumbi, quebrafacão, incó, macambira, malva, capimacu, xiquexique, mandacaru e uma biodiversidade inteira, integrada a essa mata catingueira.

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