José Eli da Veiga*
Alega-se que a noção de sustentabilidade já deveria ter alguma definição precisa, pois surgiu há mais de 30 anos.
Contudo, deve-se perguntar a quem assim pensa se existe definição precisa de “justiça”, por exemplo. É incomparavelmente mais antiga e nem por isso menos controversa. Mesmo que não seja muito difícil concordar sobre o que é injusto, ocorre o inverso ao se tentar definir o que é justiça.Nem todas as ideias são desse tipo. Por exemplo: a força de atração mútua que os corpos materiais exercem uns sobre os outros, chamada de “gravidade”. Por mais que haja diferenças nas formas de descrevê-la, ou mesmo de explicá-la, não há divergência alguma sobre o significado do vocábulo. Caso emblemático do que é realmente um “conceito”.
Mas esse termo “conceito” foi muito diluído pela banalização de seu uso. E noções importantíssimas jamais poderão ter definições suficientemente claras para que seu sentido venha a ser aceito por largo consenso. Por exemplo: a noção de democracia. É fácil encontrar aspectos antidemocráticos em sistemas políticos tão democráticos quanto os do Reino Unido e da Suíça, assim como apontar alguns dos mais democráticos em sistemas tão repugnantes quanto os de Cuba e da China. É esse tipo de penumbra que impossibilita o surgimento de definições precisas para grande parte das ideias, principalmente quando exprimem valores. Exatamente o que ignoram as queixas de que falta uma definição de sustentabilidade. Não levam em conta que se trata de um novo valor. Que emergiu dois séculos depois do marco histórico de 1789 e quase meio século depois da adoção pela ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em poucas palavras, a expressão “desenvolvimento sustentável” é um valor similar ao seu mais nobre antepassado, a “justiça social”.
Consequência óbvia é a dificuldade de se medir essas coisas com a ajuda de indicadores. O mais comum é se tentar construir índices sintéticos, resultantes de médias de algumas dimensões que, por sua vez, também já são médias de valores obtidos para punhados de variáveis.
Ingênua acrobacia cujos resultados precisam ser interpretados com máxima cautela, conforme o alerta dos melhores estatísticos (Jacob Ryten, por exemplo). É o que deve ter em mente quem resolver ler a análise socioambiental que fecha o Plano Decenal de Expansão de Energia 2019 (PDE-2019, capítulo X, pp. 290-336). Há ali um Índice de Sustentabilidade de Usinas Hidrelétricas (ISUH) que resulta da média aritmética de duas dimensões, ambiental e socioeconômica. Ambas também resultantes de médias aritméticas de cinco variáveis ambientais e onze variáveis socioeconômicas.
Grandes investimentos em infraestrutura sempre geram muitos benefícios socioeconômicos locais, como aumento de arrecadação, compensações financeiras, e emprego. Essas variáveis sempre superarão as demais. Mesmo que as estimativas ambientais fiquem restritas a comparações entre área alagada e potência instalada (em Km2/MW), à perda de vegetação (em Km2), ao trecho de rio alagado (em Km), e a eventuais interferências com unidades de conservação ou áreas prioritárias para conservação da biodiversidade. Nem é preciso entender de estatística para antecipar a forte probabilidade de que a média aritmética entre essas duas dimensões sempre reflita preponderância da econômica sobre a ambiental.
Teria sido uma imensa surpresa, portanto, se tivesse surgido resultado preocupante para algum dos 33 projetos de usinas previstos pelo PDE-2019 em 14 bacias hidrográficas. É até bem estranho que 14 desses projetos tenham acusado sustentabilidade apenas “média”, já que os parâmetros classificatórios também foram arbitrariamente escolhidos. Aliás, cinco projetos do “subsistema Teles Pires/Tapajós” foram mesmo considerados de “alta” sustentabilidade. Para que projetos de usinas viessem a ser seriamente classificados como iniciativas sustentáveis seriam imprescindíveis análises de custo-benefício que levassem em conta as reais alterações socioambientais de longo prazo. Algo que não costuma ser bem feito sequer no âmbito do processo de licenciamento. Então, por melhores que tenham sido as intenções dos técnicos, é forçoso que seja considerado suspeito esse recurso à construção de índice sintético baseado em estranhas médias aritméticas de alhos com bugalhos.
Claro, está muito longe de ser essa a principal distorção do PDE-2019. No que se refere à oferta de eletricidade, nem contempla a ideia de uma seleção de bacias amazônicas a serem sacrificadas e compensadas, com o objetivo de que outras possam ser preservadas. Além disso, insiste em mais participação de térmicas (mesmo que modesta), em vez de expansões mais significativas de renováveis e da nuclear. E, em termos mais gerais de oferta energética, confirma interesse zero pela solar, o que é simplesmente escandaloso. Em suma: melhor torcer para que, tanto índices quanto rumos possam ser corrigidos num PDE-2020 sob nova direção.
*Professor titular da USP (FEA e IRI)
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