POR THAÍS HERRERO
Municípios brasileiros começam a planejar e adotar medidas de adaptação. Mas, na maior parte dos casos, as ações visam resolver problemas imediatos, mais do que repara-los para uma mudança climática profunda no futuro próximo e distante
No município de Pintadas, no sertão baiano, a maior parte da população (cerca de 10 mil habitantes no Censo de 2010) vive da criação de animais e da agricultura de subsistência. As condições climáticas, porém, não estão favoráveis.
Nos últimos 50 anos, o milho e o feijão enfrentam dificuldades para crescer e a produção de leite caiu 8% – enquanto no resto da Bahia cresceu 42%. A quantidade de chuvas anuais diminuiu 30% e a temperatura subiu 1,75 grau, mais que o dobro do acréscimo médio global. Lá, as mudanças no clima já são uma realidade e afetam as atividades econômicas, como mostra estudo do projeto Adapta Sertão [1].
[1] Desenvolvido pela Rede Desenvolvimento Humano (Redeh) em parceria com a cooperativa Ser do Sertão, o Centro Clima da Coppe/ UFRJ e a Universidade da Califórnia.
Os pesquisadores descobriram que vacas alimentadas com uma ração mais nutritiva produzem de 15% a 80% mais leite. Segundo o coordenador do projeto, o italiano Daniele Cesano, a iniciativa promove o que se conhece entre os cientistas como “desligamento do fator climático”. “É quando condições externas deixam de impactar a produção”, explica.
Presente em 14 municípios da Bacia do Jacuípe, Semiárido baiano, o Adapta Sertão estuda sistemas produtivos e desenvolve tecnologias para tornar os produtores mais resilientes. (ver glossário) É uma medida fundamental em uma região que, segundo previsões dos climatologistas, deverá ser palco de secas mais constantes e intensas.
Cesano queixa-se da falta de apoio de algumas prefeituras, como a de Pintadas, devido a burocracias e interesses políticos. Para as pesquisas e atividades, foi preciso costurar parcerias com cooperativas independentes e captou-se financiamento do Fundo Clima, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Já a prefeitura de Pintadas, por meio de sua assessoria de comunicação, afirma que vê o Adapta Sertão de forma parceira e o apoiou desde sua fase-piloto, em 2006, participando do debate para a implementação e oferecendo logística para técnicos do projeto.
Tanto em Pintadas quanto em todas as cidades brasileiras, governantes devem ter clara a importância do preparo para as condições adversas que a mudança climática ocasiona – até mesmo para que esses locais não testemunhem diásporas de seus moradores rumo a municípios mais bem preparados, como os grandes centros urbanos. Isso intensificaria os problemas desses lugares já populosos.
Climatologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), José Marengo alerta que não há adaptação local. “Não se pode tomar medidas em uma certa cidade e deixar que as vizinhas sejam afetadas”, ensina o pesquisador, que defende a necessidade de uma política nacional para integrar diversas ações de municípios e estados.
Marengo e todos os outros entrevistados ao longo desta reportagem avaliam que as cidades brasileiras não estão bem preparadas para as mudanças no clima. “Temos mais conhecimento sobre áreas de risco, mas estamos longe de transformar isso em políticas públicas”, diz Wagner Costa Ribeiro, professor titular do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.
Ainda assim, apontam bons exemplos que colocam algumas cidades em vantagem sobre as outras diante dos cenários de aumento de desastres.
Previsões indicam que o principal problema nas metrópoles serão chuvas mais intensas, enchentes e deslizamentos em áreas de encostas.
Já as cidades litorâneas devem se preparar para um possível aumento no nível do mar. Algumas cidades, como Recife e Rio de Janeiro, enfrentarão ambos os riscos.
Quando esses problemas se tornam reais, é sobre o poder municipal que recaem as cobranças por solução, como aponta Marcelo Gramani, geólogo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
“O acidente acontece na cidade, não em Brasília. Então, tudo tem de começar ali. A prefeitura precisa estar bem capacitada e ter estrutura”, diz. Entretanto, como mostra o caso de Pintadas, nem sempre é fácil “começar ali”.
DA SOMBRINHA AO GUARDA-CHUVA
Pernambuco é um dos estados de maior vulnerabilidade ao aquecimento global no País. E sua capital, uma das cidades que mais sofrerão com a elevação do nível do mar, devido à baixa altitude costeira (entre 2 metros e 4 metros acima do nível do mar) e à alta densidade populacional no litoral.
Para lidar com o maior problema local – os deslizamentos de morros e enchentes causados pelas chuvas –, a prefeitura implantou em 2001 o Programa Guarda-Chuva.
Por meio dele, oferece avaliações e monitoramento em áreas de risco, pequenas obras (como drenagens) e ações educativas em escolas. As comunidades são diretamente envolvidas nas decisões para redução dos perigos. Ou seja, em vez de apenas intervir, o poder público criou laços com as comunidades e delas obteve confiança.
Esse programa, no entanto, não é oficialmente considerado uma ação de adaptação, apenas de prevenção de riscos, ainda que os assuntos estejam ligados e mesmo que se trate de um problema que deve agravar-se.
Já o estado de Pernambuco está trabalhando com o tema diretamente. Em 2011, o governo pernambucano lançou uma Política Estadual de Mudanças Climáticas, que prevê metas de mitigação e adaptação. Entre elas está a revisão da política de ocupação do solo para tratar das habitações em áreas de risco.
Unindo o trabalho nos dois níveis de administração – estadual e municipal –, o plano prevê que caberá aos prefeitos colocar as metas em prática. Foi com esse impulso que a prefeitura do Recife lançará até o fim do ano sua Política de Sustentabilidade e Enfrentamento das Mudanças Climáticas, com diretrizes de como implementar as metas do estado.
Maurício Guerra, secretário-executivo da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife, admite que as ações em andamento e as previstas na política climática estadual priorizam a mitigação como forma de lidar com as questões do dia a dia.
Ele considera que o aumento do nível do mar – segundo estudos um problema já previsto para acontecer no Recife – ainda não é um fato concretizado, por isso não merece atenção.
“Quando o avanço do mar for bem estudado e houver indicações mais sólidas sobre seu potencial destruidor, aí, sim, faremos uma releitura e uma nova engenharia de toda a cidade do Recife, de sua ocupação e drenagem. Por ora, isso não é a nossa realidade”, atenua.
DO CÉU PARA A CISTERNA
Já no Nordeste, a realidade é a seca. Governo atrás de governo lança programas para amenizá-la, como o 1 Milhão de Cisternas [2], que instala grandes caixas nos quintais das casas para guardar a água que cai na temporada das chuvas. Até fevereiro, haviam sido entregues cerca de 419 mil cisternas.
[2] O programa foi criado pela Articulação do Semiárido (ASA) e incorporado pelo governo federal. A meta era entregar 1 milhão de cisternas até 2008, mas, segundo a ASA, não foi atingida devido à inconstância de repasses públicos
Sem que tenha sido concebido com esse objetivo, o programa pode ser enquadrado como medida adaptativa. Segundo Saulo Rodrigues Filho, coordenador da sub-rede Desenvolvimento Regional da Rede Clima, isso acontece com algumas ações do poder público.
“Políticas de desenvolvimento e inclusão social têm efeito positivo também na adaptação, porque melhoram a condição de vida da população”, diz.
O programa das cisternas não é a solução para a seca, mas é parte da solução, porque atualmente já não existe uma perspectiva de combate à estiagem. É a mesma lógica da adaptação, aponta Marengo. “Não vamos combater o clima ou a seca.
Nunca vamos ganhar da natureza”, observa. O maior problema desse programa, aponta, é a dependência de uma estação chuvosa. Em um futuro de extremos climáticos, as estiagens podem se prolongar e as reservas obtidas com a chuva não darão conta.
Desde 2011, a pior estiagem dos últimos 50 anos atinge o sertão do Nordeste, demonstrando que essas previsões estão mais próximas do que se imagina.
REDESENHO URBANO
No artigo “Impactos das mudanças climáticas em cidades no Brasil”, o professor Ribeiro afirma que combater a exclusão socioambiental é a primeira medida para poupar vidas humanas vulneráveis à intensificação de eventos extremos, visto que boa parte da população de baixa renda vive em áreas de elevado risco.
“Temos uma dívida social antiga. É o momento de aproveitar a oportunidade para não repetir as atrocidades do passado recente. Temos de pensar novos modelos de moradia que protejam as pessoas de catástrofes climáticas”, disse Ribeiro em entrevista a Página22.
Como “atrocidades”, cita a intensa urbanização nos últimos 50 anos que gerou extrema valorização imobiliária nos centros e empurrou a população pobre para a periferia e locais de risco, como fundos de vale, encostas íngremes e imóveis sem manutenção.
Marcelo Gramani, do IPT, concorda que é hora de mudar a forma de construir moradias. “Vamos continuar construindo cidades que não se adaptam ao meio físico ou vamos trabalhar com as novas tecnologias e materiais para intervir o mínimo possível em uma área de encosta? É uma decisão que a sociedade tem de tomar.
A moradia tem de se adaptar ao terreno, não o terreno à moradia”, recomenda.
Segundo dados do IPT, de 2009 a 2011, só na capital paulista foram identificadas 407 áreas de risco em encostas e margens de córregos sujeitos a escorregamentos e com processos de erosão. Desde abril, o IPT mapeia outras áreas de risco em 31 cidades do estado de São Paulo.
Trabalhos de identificação como este são parte da etapa inicial do processo de adaptação, juntamente com a previsão dos cenários climáticos. Com essas informações, é possível analisar riscos e propor ações, como a elaboração de planos diretores municipais ou estaduais.
Para José Marengo, o Brasil ainda está nas fases iniciais. Os estudos de risco e previsões ainda são novos e estão começando a avançar. “Por isso, somos reativos aos desastres”, afirma.
Só que a natureza não espera que nos preparemos. Foi só depois das chuvas extremas de 2009 [3] que o governo federal anunciou a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) [4].
As operações só começaram, no ritmo de 24 horas por dia, em dezembro de 2011. Não deu tempo de prever uma das maiores catástrofes climáticas do País, em janeiro daquele ano. Enxurradas atingiram a Região Serrana do Rio de Janeiro e deixaram mais de 900 pessoas mortas e 35 mil desabrigadas.
[3] Chuvas provocaram destruição no Norte e no Nordeste, além de 29 mortes. Maranhão e Piauí foram os mais afetados, com centenas de milhares de desabrigados por causa das enchentes. Na virada do ano de 2009 para 2010, deslizamentos deixaram 53 mortos em ilhas de Angra dos Reis (RJ)[4] O Centro monitora 310 municípios por meio de pluviômetros, imagens de satélites, radares meteorológicos e análise de solo para gerar informação sobre áreas de risco de enchentes ou deslizamentos
TERRA DA (MUITA) GAROA
Já na maior cidade do País, estudos mostram que o clima já mudou e, desde 1930, as chuvas extremas têm intensidade de precipitação de três a quatro vezes maior. Os alagamentos hoje custam R$ 750 milhões anuais a São Paulo.
Ampliar, então, a capacidade de absorção de água é uma das ações de adaptação necessárias na cidade. Para Wagner Costa Ribeiro, da USP, os parques lineares [5] cumprem papel crucial ao melhorar a permeabilidade do solo, minimizar enchentes e proteger cursos d’água.
[5] Projeto previsto no Plano Diretor de São Paulo, visa recuperar áreas de vegetação que ocorrem nas margens de rios e mananciais. Um deles, por exemplo, está na Represa do Guarapiranga
“Além disso, caracterizam-se pela reintrodução de espécies que lá viviam e recebem equipamentos que os tornam aprazíveis centros de lazer para a população do entorno”, diz. O único desafio que o programa deve resolver é quanto às desapropriações. Em seu artigo, escreveu:
“A nova localização das habitações deve propiciar aos moradores manter os vínculos com a área anterior, já que é nela que eles encontram trabalho e possuem vínculos culturais e afetivos.
PÉ NO PRESENTE
Como provam as cidades brasileiras, há algumas ações que contemplam a necessidade de adaptação no futuro, mas a maioria ainda tem os pés fincados no presente, e para a resolução das deficiências emergenciais.
Ao avaliar o preparo das cidades brasileiras para adaptação, Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), membro do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), sublinha que um tema crucial é a adaptação ao clima atual.
“O passivo em políticas de adaptação à mudança climática não começa com as políticas para o futuro, mas sim como um passivo de adaptação ao clima de hoje”, conclui.
(Colaborou Lydia Minhoto)
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