A síndrome do Homo sapiens cozido !























Talvez uma das noções mais nostálgicas, pesarosas e tristes que possamos ter é admitir que um dia o nosso planeta seguirá o curso de seu destino sem a nossa presença, sem a presença do Homo sapiens e seus feitos extraordinários. Sem nossas máquinas, sem nossas catedrais, sem nossos túneis, sem nossos poemas, sem nossas paixões, sem nossas crenças, sem nossa semelhança com Deus, sem nosso orgulho de espécie, sem nossos sonhos, sem nossos descendentes reproduzindo tudo isso em maior ou menor grau, mas com pretensões de originalidade.
No entanto, o sentido de tal situação de pesar só pode ocorrer por suposição, por hipótese, por meio da antecipação operada pelo pensamento, uma vez que a situação de fato cria uma espécie de paradoxo insolúvel: Como poderemos nos entristecer por não estarmos aqui como espécie se de fato não estaremos aqui como espécie para nos entristecer?  Talvez essa noção arrefeça qualquer tanto a força dessa nostalgia e impeça que ela freie o nosso ímpeto de autodestruição.
Autodestruição que, aliás, muitas vezes se nos apresenta sob o título alvissareiro e pseudamente amável de progresso, divisas externas, desenvolvimento econômico, capacidade de pagamento, crescimento real, PIB, superávit primário e quejandos. Uma cristalização dessa ideia pode estar nos versos de Fernando Pessoa: Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é. E assim, nós a sociedade de consumo e da informação sem reflexão, a dita sociedade contemporânea ou pós-moderna da qual fazemos parte, liga o f  na
potência máxima e doidamente antecipa o oco "çinixtro".
Há uma outra noção, não menos nostálgica, não menos dolorosa, que é continuar vivendo a nossa vida como espécie mas num planeta poluído, desfigurado, doente, como um nuvem de insetos, pululando sobre as chagas de um corpo em decomposição. Arg!
Esta não é uma situação à qual possamos alcançar apenas por meio do pensamento hipotético. Esta é uma situação real que acontece dia após dia diante de nossos olhos. Mas insistimos em não ver tal degradação. Nossos interesses imediatos jogam véus espessos em cima dessa realidade brutal e seguimos com a inocência comovente de chapeuzinho vermelho com sua cestinha para buscar morangos na floresta.
Talvez entre aí um aspecto ancestral do Homo sapiens para nos empurrar e conduzir por essa atitude maléfica. Nos primórdios da espécie, logo após a saída das cavernas, o Homo sapiens formou sociedades nômades, perambulando como caçadores de animais e coletores de coisas diversas pelas estepes africanas. Assim nossos antepassados podiam estar num vale novo, num platô diferente, numa montanha nunca vista antes, em fim diante de uma paisagem nova a cada dia. Com a formação dos grupamentos humanos, com o surgimento dos povoamentos, vilas e cidades, e a adoção do estilo de vida sedentária, continuamos trazendo dentro de nós aquele ser ancestral de costumes e hábitos nômades.
No entanto, agora, com o novo estilo de vida, mudamos a paisagem ao invés de mudarmos nós. Continuamos nômades, sem sair do lugar, mas interferindo bravamente na paisagem que nos rodeia, mais pela vaidade da mudança do que mesmo pela necessidade da adequação e proveito efetivo. Talvez a necessidade de consumo sem freio advém desse cacoete ancestral, do nomadismo mal resolvido, do bicho inquieto que trazemos dentro de nós, interferindo diabolicamente sem cessar em tudo o que está ao nosso alcance e buscando alcançar aquilo que ainda está fora.
Queremos mudar tudo, todo dia: é o nosso nomadismo quotidiano. Achamos bonito um morro desmanchado, uma terra amontoada, uma ponte projetada sobre o vão do rio, o edifício levantado, a água estancada, a cachoeira erodida, a mata jogada por terra, o deserto replantado, um penteado novo, uma nova cor nos olhos. Queremos uns óculos com aspecto original, um carro com novo design, um chapéu que nos dê molde mesmo que não nos proteja das intempéries. É, meu camarada, somos nômades sem sair do lugar. E mudamos tudo o tempo todo para que possamos ter uma nova paisagem ao nosso redor a cada instante. Um caleidoscópio paisagístico.
É de se lembrar que o nosso planeta, o nosso planetinha azul de clima ameno e sem igual no firmamento até onde nossa vista ampliada por telescópios alcança, não aguenta tanto desaforo do nosso “nomadismo sedentário”. Nossa casa está apodrecendo numa velocidade maior do que sua capacidade de regeneração. E pensar que um Deus benévolo irromperá  num rompante restaurador e colocará tudo em boa ordem novamente é uma  improbabilidade acachapante. Acreditar que nosso desenvolvimento tecnológico virá com suas máquinas malucas suturar as feridas que tão imprudentemente abrimos na carne do planeta é uma superstição sem precedentes no transcurso da espécie.
E que opção nos resta se nosso desenvolvimento tecnológico é incompetente para tal e Deus está lixando as unhas e olhando para os confins do universos, enquanto nós aprontamos nossas traquinices?
Por incrível que pareça, temos o componente instalado, o remédio para tal problema em nós mesmos, que seria a atitude ética e racional. Precisamos não apenas compreender a situação de desastre que estamos produzindo. Precisamos, isto sim, de uma atitude individual e coletiva, no sentido de usar os recursos naturais com parcimônia e moderação e a própria natureza cuidará do resto. Simples assim. Mas por que isso não ocorre?
O fato é que parece que sofremos da síndrome do sapo cozido. Diz a fábula que se se colocar um sapo numa tacha de água fervente ele se debate e salta de banda, do jeito que for possível e sai em disparada. Mas se se colocá-lo na água natural e for esquentando gradualmente, ele vai se acostumando, acostumando até morrer cozido, sem perceber.
O certo é que o nosso nomadismo ancestral, convertido em ação quotidiana e consumo desenfreado, impede que entre em operação o nosso senso ético e racional. E vamos assim tristemente nos tornando sapos cozidos, numa escala planetária.

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