Mergulhos para limpar o Tietê


José Leonídio Santos trabalha há 20 anos na limpeza de dois rios que estão entre os mais poluídos do mundo
THE NEW YORK TIMES
Os rios Tietê e Pinheiros, que atravessam São Paulo, metrópole de 20 milhões de habitantes, fluem sem maiores problemas em algumas partes. Mas, em certos trechos, eles praticamente escorrem. Suas águas podem ser descritas talvez, como “cinzentas”, e o aroma, reminiscente de ovos podres, pode causar náusea nos transeuntes.
José Leonídio Rosendo dos Santos mergulha em ambos os rios há mais de 20 anos. Contratado principalmente para desentupir as grades de escoamento, ele varre as profundezas turvas do Tietê e do Pinheiros, há décadas símbolos da degradação ambiental da capital paulista, para trazer à superfície uma lista de itens que é sinistra e bizarra.
Lalo de Almeida/NYT
Lalo de Almeida/NYT / José dos Santos chama a atenção dos motoristas pela coragem em mergulhar no rio poluído e pelo traje de plástico grosso, feito para ser imune à sujeira...Ampliar imagem
José dos Santos chama a atenção dos motoristas pela coragem em mergulhar no rio poluído e pelo traje de plástico grosso, feito para ser imune à sujeira...
Proteção
Para afastar a sensação de sujeira, José se vale de uma dose de rum
José dos Santos é dono de um capacete de mergulho Kirby Morgan, que veste com orgulho, e nunca toca a água sem seu equipamento de proteção, feito de plástico e mais espesso que uma roupa de mergulho comum. Há o medo de encontrar alguma carcaça ou de rasgar a roupa de mergulho com algum pedaço de metal, o que poderia levar a infecções. “Após cada mergulho, eu tomo uma dose de rum Montilla Carta Ouro”, ele diz. “Me ajuda a me sentir limpo”.
Mas José diz que os rios da cidade estão um pouco mais limpos do que já foram. Ele vem encontrando menos cadáveres nos últimos anos. Seus mergulhos também lhe deram uma perspectiva rara sobre essa cidade intimidadora. “Quando mergulho lá embaixo, tudo fica absolutamente quieto. É como estar no espaço, ponderando sobre uma civilização que chegou à beira da destruição.”
Ao longo dos anos, as coisas que ele retirou dos rios – as quais ele é obrigado a entregar às autoridades – incluem uma bolsa com R$ 2 mil dentro, armas de fogo, facas, fogões e geladeiras, incontáveis pneus de automóveis, e, dentro de uma outra bolsa, os restos em decomposição de uma mulher que havia sido esquartejada. “Eu parei de olhar as bolsas depois disso”, diz José, de 48 anos.
Ele admite prontamente que esse não é um trabalho para qualquer um. Mas, para José, um surfista que entrou no ramo do mergulho para bancar o seu hobbie, o trabalho lhe rendeu um grau incomum de notoriedade e admiração dos paulistanos.
No meio dos engarrafamentos nas marginais, alguns motoristas param o carro e tiram fotos com smartphones ao verem José se preparando para mergulhar. Apresentadores de televisão ficam admirados com sua coragem. Um jornal paulistano, ao descrevê-lo em sua roupa de mergulho, o comparou a um “super-herói japonês”.
Segundo reconta o historiador Janes Jorge em seu livro Tietê: o rio que a cidade perdeu, este era adorado pelos residentes de São Paulo do meio do século passado, quando eles pescavam, nadavam e faziam corridas de barco em suas águas. E então São Paulo floresceu como uma das maiores cidades do mundo, e os dejetos de todas as pessoas e fábricas que se desenvolveram por toda a área metropolitana foram sendo despejados diretamente no Tietê e no Pinheiros.
Os rios agora persistem na cultura popular do Brasil como alvos de diversas sátiras. Bandas como Skank já compuseram canções sobre o sonho aparentemente impossível de despoluir o Tietê. O cartunista Laerte Coutinho criou toda uma tirinha chamada “Piratas do Tietê”, em que os protagonistas navegam pelo rio malcheiroso em expedições de pilhagem pela São Paulo contemporânea.
José insiste que jamais viu piratas navegando pelo Tietê ou seus afluentes, mas disse já ter visto outros seres vivos por lá. Garças passeiam, na ponta dos pés, em algumas margens. Capivaras, os maiores roedores do mundo, rolam na lama em alguns trechos do Tietê e Pinheiros. E sabe-se que jacarés já foram vistos emergindo dos rios, cansados, porém ainda resistentes.
Tradução: Adriano Scandolara.
Despoluição é feita há 20 anos de forma lenta

Desde 1992, as autoridades vêm avançando com um projeto lento e detalhado para despoluir o Tietê e o Pinheiros. Os líderes políticos brasileiros dizem que os esforços para a purificação dos rios, financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, estão indo bem. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, disse que, por volta de 2015, barcos poderiam ser usados para levar turistas para conhecer as maravilhas de São Paulo através do Tietê.

Cientistas brasileiros apontam para precedentes de processos de despoluição de rios cruciais, como Paris fez com o Sena, ou Londres com o Tâmisa, permitindo que salmões se criassem lá, décadas após eles terem desaparecido.

Limpar o Tietê e seus afluentes, no entanto, oferece complicações próprias, e uma das mais importantes delas é o acesso ao tratamento de esgoto. Essa deficiência ameaça a única cidade verda­­deiramente global do país, on­de fundos de cobertura habitam enormes arranha-céus pós-modernos, consumidores abastados desfrutam de shoppings de luxo, e onde é tão provável que imigrantes falem castelhano quanto quéchua.

Ao mesmo tempo, 4 milhões de pessoas – cerca de 20% da população metropolitana de São Paulo – ainda não têm saneamento básico, de acordo com Mônica Porto, especialista em recursos hídricos da Universidade de São Paulo. Até 2011, Guarulhos, cuja população é de 1,3 milhões e que abriga o aeroporto internacional da cidade, não tratava quase nada do seu esgoto.

O progresso no processo de conectar mais domicílios ao sistema de esgoto vem sido feito lentamente. Mas a geografia acidentada de São Paulo e sua rede confusa de favelas, que persistem em áreas próximas aos rios, fazem com que essa tarefa seja difícil. Assim, os dejetos de milhões de habitantes, juntamente com dejetos industriais de origem duvidosa, ainda fluem para essas águas que já foram muito estimadas pelos paulistanos.

“Precisamos ajustar nossas expectativas”, afirma Porto, que deu um aviso contra as projeções de que os rios poderiam logo recuperar seus ecossistemas. “Por volta de 2030 poderíamos ter rios dos quais não teremos vergonha.”

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