Por Helder Queiroz* – Tal como mencionamos num artigo de março de 2010, as políticas energéticas em diferentes países e as estratégias das empresas de energia estão sendo progressivamente reorientadas, a fim de atingir, no longo prazo, padrões de produção e uso de energia que levem em consideração as novas condições de contorno do setor de energia.
Surge como principal vetor deste processo de transição o componente tecnológico. Neste sentido, abre-se hoje um leque importante de novas possibilidades tecnológicas que envolvem novas fontes de energia e novos equipamentos. É possível citar como ilustrações exemplares dessa tendência na geração de energia elétrica com: i) o papel esperado de uma contribuição crescente de fontes renováveis; ii) a incorporação de novas tecnologias em programas de eficiência energética e iii) as transformações esperadas no setor de transporte automotivo.
Este texto está dedicado à análise deste último ponto. Depois de décadas sem transformações significativas, o setor de transportes se encontra, hoje, no centro dos debates acerca de estratégias factíveis que permitam alterar o binômio “motores a combustão-derivados de petróleo”. Não é por acaso que, dentre as grandes corporações internacionais se encontrem os fabricantes de automóveis e as empresas de petróleo. As vantagens inerentes deste binômio consolidaram um padrão de mobilidade do consumidor individual em torno dos automóveis com motores a combustão. O crescimento da demanda de carros de passeio e da gasolina e do diesel contribuiu, em grande medida, para o sucesso dessas corporações ao longo do século XX.
Ao longo da última década, tal como destacado em diferentes textos postados aqui, as políticas energéticas têm sido revistas buscando a compatibilização dos objetivos de segurança energética, redução da dependência externa de energia e a redução das emissões de CO2.
Neste sentido, o setor de transportes, ancorado fundamentalmente na demanda de gasolina e de diesel, tem se revelado como uma arena crucial para as mudanças necessárias para o alcance dos objetivos fixados acima.
Dessa forma, uma série bastante diversificada de alternativas emergem como potenciais soluções. No setor de transportes no qual predomina o uso de derivados de petróleo, a “grande e longa transição” aponta para uma corrida energética e tecnológica para abastecer o automóvel do futuro[1]. Desde o início da última década, passamos pelos supostos benefícios da Economia do Hidrogênio, pelo pretenso papel dos biocombustíveis (etanol e biodiesel) de primeira e segunda geração, pelos automóveis com motores flex, chegando aos carros elétricos e aos carros híbridos, especialmente associados à tecnologia plug-in.
O transporte rodoviário ainda é o modal mais utilizado no mundo atualmente para movimentar tanto mercadorias, quanto pessoas (cerca de 80%), e, continua a crescer a cada dia não mostrando sinais de contenção (espera-se um crescimento médio de 2% a.a). Para atender esta crescente demanda, os derivados de petróleo, como o diesel e a gasolina, ainda se constituem nos principais recursos energéticos requeridos, representando cerca de 98% do total utilizado no mundo.
A figura 1 abaixo ilustra de maneira esquemática o leque de alternativas que se desenham hoje no setor de transporte.
Fonte: IFP(Institut Français du Pétrole)
Não obstante os avanços tecnológicos em curso associados a todas essas alternativas, parece que este cenário atual se caracteriza ainda por uma multiplicação de soluções em busca de um problema a ser equacionado.
Um pequeno exemplo pode ser útil para ilustrar o argumento acima. É possível destacar três candidatos ao posto de problema central:
i) redução das emissões;
ii) redução da dependência energética e pico da produção do petróleo;
iii) mobilidade urbana.
Tem se revelado muito difícil a adoção de instrumentos de política ou mesmo de acordos/convenções internacionais que possam atender simultaneamente esses três problemas. Por um lado, se o problema central for a redução dos efeitos globais das emissões, as políticas de substituição da gasolina e do diesel podem emergir como as mais adequadas. Para atingir tal objetivo, as soluções concorrentes seriam: a) os blends de combustíveis (gasolina + etanol e/ou biodiesel+diesel), ainda que persistam controvérsias sobre os seus reais benefícios ambientais e b) os veículos híbridos e elétricos.
No primeiro caso, o motor a combustão seguiria seu rumo, mantendo-se assim as barreiras à difusão de carros elétricos ou mesmo dos híbridos. No segundo, o papel dos biocombustíveis, de primeira e segunda geração, tenderia a se tornar marginal. Ademais, os instrumentos de política energética e as demais políticas públicas necessárias para a implementação desse processo de substituição são muito distintos no caso da adoção de uma ou de outra solução. Em particular, porque elas dependem sobremaneira de investimentos importantes em logística de distribuição e revenda para atender às necessidades de abastecimento dos consumidores. E vale observar que o perfil desses investimentos é bastante distinto em cada caso. Não é à toa que nos EUA, apesar do incremento da produção de etanol, em muitos estados ainda não foi criada uma logística de distribuição desse combustível.
O mesmo raciocínio e os mesmos candidatos podem ser utilizados caso seja privilegiada a questão ii), decorrente das preocupações de segurança do abastecimento energético e dos problemas levantados por aqueles que advogam pela proximidade do “peak oil” (pico de produção de petróleo). Porém, nesse caso, é de se esperar uma vasta gama de soluções nacionais, muito diferentes umas das outras, pois elas serão seguramente condicionadas pelas dotações de recursos energéticos de cada país. Consequentemente, o tema da estrutura e da capacidade de oferta passa a ser igualmente relevante.
No caso dos biocombustíveis a capacidade mundial de oferta tanto de etanol quanto do biodiesel está ainda muito aquém daquela necessária para atender, por exemplo, o mercado da União Européia[2]. E no caso dos carros elétricos, a demanda adicional de eletricidade não pode estar ancorada em combustíveis fósseis, em particular no carvão, pois isto anularia os efeitos esperados da redução das emissões.
Por outro lado, para atenuar os problemas de mobilidade e de poluição local, inerentes ao estrangulamento das vias urbanas, a mera substituição destes derivados de petróleo pode não se revelar suficiente. Se o problema central é o da mobilidade em grandes metrópoles, o ideal seria a adoção de políticas voltadas, por exemplo, ao desenvolvimento de outros modais, apoiada num regime de incentivos direcionados especialmente ao desenvolvimento transportes públicos de qualidade. Estas poderiam, em caso de sucesso, retirar os automóveis das cidades sem usar nenhuma das alternativas usadas acima na coluna Motor/Veículo da Figura 1.
O que importa notar é que as barreiras à substituição do padrão bem sucedido de mobilidade individual do século XX ainda são muito grandes. Para superá-las será indispensável o avanço tanto no campo tecnológico, bem como um processo de inovação no campo político-institucional. Isto reforça o argumento de que a transição para um novo padrão será muito longa. A retroalimentação entre as duas dimensões – político/institucional e tecnológica – surge como uma condição necessária à implementação efetiva de novos instrumentos de política energética que contribuam ao processo de substituição de derivados de petróleo.
As “incertezas sem precedentes” mencionadas pela Agência Internacional de Energia[3] estão relacionadas tanto com a indefinição de diretrizes consistentes de política energética, quanto com a variedade das opções que se desenham. Nenhuma destas opções é capaz ainda de superar, com vantagens ambientais e econômicas, o padrão de transporte automotivo estabelecido pelo binômio motor a combustão-derivados de petróleo. Além dos preços do petróleo, as fontes de incerteza estão relacionadas a três fatores principais: i) custo e disponibilidade de matérias-primas; ii) economicidade das tecnologias de conversão e iii) regulamentação governamental.
Quais dessas alternativas tecnológico-energéticas serão viabilizadas a longo prazo? É impossível aportar elementos de resposta hoje a essa pergunta. Tal situação é típica de momentos de transição. Mas em algum momento será necessário privilegiar o problema central a ser equacionado.
* Helder Queiroz é Doutor em Economia Aplicada (1993) pelo Instituto de Economia e Política de Energia/Universidade de Grenoble, França. É Professor Adjunto no Instituto de Economia (IE) da UFRJ e é membro do Grupo de Economia da Energia do IE/UFRJ. No período 2002-2003 foi Diretor de Pesquisa do IE/UFRJ
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