Até sua morte, no terremoto do Haiti, Zilda Arns era pouco conhecida da maioria dos economistas, investidores e empresários comprometidos com o crescimento tradicional do PIB. A médica sanitarista, no entanto, deveria figurar nos anais das boas escolas de administração do mundo inteiro, como criadora de uma metodologia de trabalho revolucionária e altamente eficiente.
A Pastoral da Criança, que ela ajudou a criar em 1983 como desafio proposto pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) à Igreja Católica, exibe indicadores invejáveis, seja qual for o ângulo adotado para analisar o desempenho da entidade. O mais admirável é o custo mensal por cada uma das cerca de 2 milhões de crianças atendidas: menos de US$ 1,00. Os recursos de pouco mais de R$ 35 milhões utilizados no exercício de 2008 representaram um custo mensal de R$ 1,69 por criança, decomposto em vários investimentos, como capacitação de voluntários (R$ 0,18 por criança/mês), apoio geração de renda (R$ 0,06) e educação de jovens e adultos (R$ 0,05).
Presente em 42 mil comunidades pobres e em 7.000 paróquias de todas as Dioceses do Brasil, a Pastoral se move num trabalho de formiga, que envolve 260 mil voluntários (92% deles mulheres). Imbuídos do espírito missionário, eles dedicam, em média, 24 horas por mês ao trabalho de orientar mães e famílias para que cuidem bem de suas crianças. O objetivo primordial da entidade, organismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é “reduzir as causas da desnutrição e da mortalidade infantil e promover o desenvolvimento integral das crianças, desde a concepção até os 6 anos de idade”. Como pediatra e sanitarista, Zilda Arns acreditava que “a primeira infância é uma fase decisiva para a saúde, a educação, a fixação de valores culturais e o cultivo da fé e da cidadania, com profundas repercussões ao longo da vida”.
O atendimento a cerca de 1,5 milhão de famílias em mais de 3.500 cidades brasileiras trouxe um novo sentido de dignidade e cidadania aos excluídos da nação. Fez também despencar os índices de desnutrição e de mortalidade infantil a patamares ainda hoje perseguidos pela ONU. Em 1983, a Pastoral encontrou 50% de crianças desnutridas – hoje elas são 3,1% das atendidas. A mortalidade infantil despencou de 127 para 13 por mil nascidos vivos. Que outra empresa, ONG ou entidade governamental pode se dar ao luxo de ostentar desempenho tão robusto?
Graças à coordenação e ao empenho de Zilda Arns e à sua rede de voluntários, o Brasil poderá dizer que fez parte da lição de casa proposta pela Declaração do Milênio, aprovada pelas Nações Unidas em setembro de 2000. Das oito metas a serem atingidas até 2015, pelo menos duas – “erradicar a extrema pobreza e a fome” e “reduzir em 50% a mortalidade infantil” – sem dúvida alguma devem muito à Pastoral da Criança. Que desde 2008 exporta sua tecnologia social para outros continentes. Angola, Moçambique, Guiné-Bissau; Timor Leste, Filipinas, Paraguai, Peru, Bolívia, Venezuela, Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai, Equador e México. No Haiti, Zilda Arns estava justamente empenhada em divulgar a metodologia que criou e que tem caráter ecumênico. Numa entrevista, ela contava como voluntários muçulmanos se sentiam felizes por poder ajudar seus conterrâneos da Guiné-Bissau.
Distorção do PIB
A repercussão desse incansável trabalho, no entanto, não é levado em conta pelos homens que cuidam do produto interno bruto (PIB). Quem acusa esse grave desvio, sempre que tem oportunidade de tocar no assunto, é Ladislau Dowbor, economista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na última Conferência do Instituto Ethos, ele voltou ao tema, usando a performance da Pastoral da Criança como exemplo. Ele diz que seus excelentes resultados na saúde preventiva não são levados em conta para quem vincula progresso e crescimento a aumento do PIB. Afirma que os agentes da Pastoral são responsáveis, nas regiões onde trabalham, por 50% da redução da mortalidade infantil e 80% da redução das hospitalizações, e argumenta que, “com isso, menos crianças ficam doentes, o que significa que se consomem menos medicamentos, usam-se menos serviços hospitalares e as famílias vivem mais felizes”. E completa, indignado: “Mas o resultado do ponto de vista das contas econômicas é completamente diferente: ao cair o consumo de medicamentos, o uso de ambulâncias, de hospitais e de horas de médicos, reduz-se também o PIB. Mas o objetivo é aumentar o PIB ou melhorar a saúde (e o bem-estar) das famílias?”.
A reflexão está, também, em artigo que Dowbor divulga em seu site e que reproduzimos aqui: “Todos sabemos que a saúde preventiva é muito mais produtiva, em termos de custo-benefício, do que a saúde curativa-hospitalar. Mas, se nos colocarmos do ponto de vista de uma empresa com fins lucrativos, que vive de vender medicamentos ou de cobrar diárias nos hospitais, é natural que prevaleça a visão do aumento do PIB e do aumento do lucro. É a diferença entre os serviços de saúde e a indústria da doença. Na visão privatista, a falta de doentes significa falta de clientes. Nenhuma empresa dos gigantes chamados internacionalmente de big pharma investe seriamente em vacinas, e muito menos em vacinas contra doenças de pobres. Ver este ângulo do problema é importante, pois nos faz perceber que a discussão não é inocente, e os que clamam pelo progresso identificado com o aumento do PIB querem, na realidade, maior dispêndio de meios, e não melhores resultados. Pois o PIB não mede resultados, mede o fluxo dos meios”.
O economista afirma que o trabalho da Pastoral da Criança não é contabilizado como contribuição para o PIB. “Para o senso comum, isto parece uma atividade que não é propriamente econômica, como se fosse um band-aid social. Os gestores da Pastoral, no entanto, já aprenderam a corrigir a contabilidade oficial. Contabilizam a redução do gasto com medicamentos, que se traduz em dinheiro economizado na família, e que é liberado para outros gastos. Nesta contabilidade corrigida, o não-gasto aparece como aumento da renda familiar. As noites bem dormidas quando as crianças estão bem representam qualidade de vida, coisa muitíssimo positiva, e que é afinal o objetivo de todos os nossos esforços. O fato de a mãe ou o pai não perderem dias de trabalho pela doença dos filhos também ajuda a economia”, esclarece.
Zilda Arns, uma mulher atenta às demandas dos mais pobres, fez pelo Brasil o que a maioria dos políticos e governantes juntos não fizeram nos últimos 30 anos. Sua obra permanecerá, porque se apoia em pilares sólidos, chamados amor, solidariedade, fé, compaixão, transparência. “Estou convencida de que a solução da maioria dos problemas sociais está relacionada à redução urgente das desigualdades sociais, à eliminação da corrupção, à promoção da justiça social, ao acesso à saúde e à educação de qualidade e à mútua ajuda financeira e técnica entre as nações, para a preservação e recuperação do meio ambiente”, disse ela numa conferência na Tailândia, em outubro passado. E também estava atenta às demandas do planeta: “O mundo está despertando para os sinais do aquecimento global, que se manifesta nos desastres naturais, mais intensos e frequentes. A grande crise econômica demonstrou a inter-relação entre os países. Para não sucumbir, exige-se solidariedade entre as nações. É de solidariedade e de fraternidade que o mundo mais necessita para sobreviver e encontrar o caminho da paz”. Sábia Zilda. (Edição de Benjamin S. Gonçalves)
(Envolverde/Instituto Ethos)